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Como Chico Science produziu o clássico "Afrociberdelia"

Com seu segundo disco, Science abriu portas no exterior. Mas antes de falar para o mundo, engoliu os sapos de seu quintal

No prefácio do encarte do segundo álbum de Chico Science & Nação Zumbi, o escritor paraibano Bráulio Tavares, numa projeção futurista, define o termo que batiza o disco. Ele diz que a Afrociberdelia era praticada informalmente por tribos de jovens urbanos durante a segunda metade do século 20. Felizmente, passamos a nos embebedar bastante daquela idéia e, nesta primeira metade do século 21, os seguidores dela crescem aos milhares, aqui e no exterior ainda que não saibam que a praticam. Afinal, desde a hibernação alienada e yuppie pela qual passou a década de 80, psicodelia, cibernética e raízes africanas são conceitos recorrentes e necessários para o jovem urbano que produz e consome cultura pop no novo milênio. "Afrociberdelia", o álbum que há dez anos projetou a banda pernambucana nacional e internacionalmente, estava à frente de seu tempo.

"Da Lama ao Caos", o álbum de estréia, de 1994, já era pioneiro por si só. Mas ficou aquém da expectativa da banda. Entre o contrato e sua produção, em 1993, pouco tempo se passou. Após alguns shows com o mundo livre s/a, Chico já estava assinando com a Sony. Ele tinha em mente nomes específicos para a produção, como o Arto Lindsay, mas deram poucas opções. "Na pressa, o grupo gravou com o Liminha", lembra Paulo André, empresário da banda na época. Chico Science ainda era um pouco inseguro nos vocais e a banda não tinha experiência em estúdio. E Liminha, mesmo com sua extensa ficha corrida, nunca havia gravado tambores como aqueles. "Ele ficou de cara com aquele combo percussivo, sem pratos... Não existia na Nação o set up de bateria como hoje", conta Jorge du Peixe, atual líder e vocalista. As tentativas de captar o poderoso som dos tambores de maracatu viraram papo de boteco entre músicos e técnicos da época. Liminha usou uma experiência com bateria de samba. "Mas nunca tinha sido feito com pele natural, de animal, com um som tão encorpado", diz o guitarrista Lúcio Maia. "Na época ficamos satisfeitos, mas depois começamos a perceber que o disco ficou muito plástico, com o tambor soando como bumbo de bateria", completa.

Na opinião de Liminha, o principal impacto que a banda produzia era visual um monte de gente descendo o braço em tambores e nem tanto sonoro. Fazia com que o som parecesse melhor do que era. O produtor conta que tentou potencializar isso, mas não nega as dificuldades. "Gravamos em fita. Se tivéssemos um Protools, a conversa seria outra". Até o engenheiro de som, na masterização em Los Angeles, sentia falta de altas freqüências, como pratos. A impressão geral era que a banda ao vivo rendia muito mais do que no registro de Da Lama ao Caos. Feita a turnê de lançamento do primeiro disco, com direito a participação no festival de Montreux (Suíça) e duas faixas em trilha de novela, a banda teria mais autonomia e tempo para o segundo álbum. Jorge du Peixe lembra que "nos tempos do Lama, eu já tinha separado com Chico uma penca de samplers, mas só no Afrociberdelia pudemos dar mais atenção a essa linha tecnológica". Para o novo trabalho, a Sony permitiu que a banda indicasse o produtor. O estúdio, no entanto, deveria ser o mesmo Nas Nuvens, mantido por Liminha no Rio de Janeiro.

Não foi só a estrutura técnica e a experiência que ajudaram a construir um segundo disco melhor. "Liminha ensinou muito, mas todo grande produtor quer dar uma cara pessoal. E a Nação precisava manter seu próprio ideal", avalia Lúcio. Para isso, o grupo decidiu co-produzir o álbum, dividindo a tarefa com Eduardo BiD, então guitarrista do Professor Antena, um sujeito que, apesar das dezenas de afinidades com Chico Science, ainda não tinha orquestrado um disco inteiro uma única vez. "Rolava muito gosto em comum: jazz, hip hop underground, soul...", lembra Du Peixe. "Macô" começou a ser feita no estúdio dele, em cima de uma base que outra banda do BiD, a Zambasters, ia gravar. Ele passou a música pro Chico, pois sempre tiveram uma confiança mútua. BiD traduzia muito bem o som da banda e dava uma vitrine mais universal para o nosso som.

Ok, o cara era amigo e afinado com a banda. Mas a Sony não gastaria milhares com um marinheiro de primeira viagem. A gravadora pediu a BiD que produzisse, com seus próprios meios, uma demo da Nação Zumbi para que avaliasse seu trabalho. "Levei um monte de coisas pra Recife praticamente meu estúdio inteiro na época", conta BiD. Banda e produtor ficaram cerca de um mês na capital pernambucana. Foi quando compuseram "Um Passeio no Mundo Livre" inspirados nas constantes averiguadas que Gilmar Bola Oito e Gira sofriam da polícia a caminho do estúdio. Confiscaram um walkman porque eles não tinham nota fiscal. "Era muito comum eles passarem por esse tipo de provação", lembra BiD. Também foi composta para a ocasião "Corpo de Lama", com programação eletrônica. Chico já estava antenado com essas coisas: ele e Jorge curtiam e queriam usar samplers, batidas. A demo fechou com Samba do Lado e suas requebradas inversões de tempo. Destaque para Pupillo, baterista que deixava a banda mais sincopada (e com pratos!), ocupando o lugar de Canhoto.

Demo aprovada, a trupe afrociberdélica foi para o Rio de Janeiro, em dezembro de 1995. A boa relação mantida com a gravadora começou a ser atropelada por desencontros e urucubacas variadas. A começar pelo apartamento que o grupo alugou, no bairro de Santa Teresa. "Era enorme, com cinco quartos. Mas foi péssimo. Um clima carregado, um foi enjoando do outro...", conta Lúcio. O apartamento, apesar de grande, era vazio: só tinha colchões e um microsystem. O desconforto geral só aumentava a tensão da banda. "Eles levavam gelo do estúdio para derreter e tomar água fresca no apê. Lá não tinha geladeira, não tinha nada...", conta BiD, que ficou num hotel em Copacabana. Era pleno verão e, como costuma ser, o Rio de Janeiro fervia. "Essa história é sinistra. Eles tinham direito a um adiantamento da gravadora, daí teve o aluguel desse lugar...", questiona o produtor. "Nunca ficou muito bem explicado como foi usada essa grana".

Paulo André desconversa. Ele diz que a Sony atrapalhou mesmo ao se intrometer demais no marketing da banda. Segundo o empresário, o atropelo teria começado com o Hollywood Rock, que aconteceu em janeiro de 1996, com atrações como Robert Plant e Jimmy Page, Black Crowes, White Zombies, Smashing Pumpkins e The Cure. Chico Science era um dos raros nomes nacionais. Houve uma correria para finalizar "Manguetown" antes do disco. "Prensamos o single pras rádios e gravamos um clipe com o Gringo Cardia", lembra Paulo. "Da Lama ao Caos", apesar de ter emplacado faixas em novela, não tinha sido tocado nas FMs com a freqüência que a Sony desejava. "O pessoal do marketing de rádio foi o único que torceu o nariz", lembra o diretor artístico da multinacional na época, Jorge Davidson. Com a idéia de incrementar o apelo comercial de "Afrociberdelia" surgiu a idéia de incluir uma versão de "Maracatu Atômico", composta por Jorge Mautner e Nelson Jacobina em 1972. A primazia da sacada é discutida. "Eu tive a idéia, achava que tinha tudo a ver", fala BiD. "A música foi idéia minha! BiD foi quem mais colocou resistência", defende Davidson. O produtor, contudo, tem outra história: "Meu plano original era usar um sampler de 'Get Up Upon the Sun', dos Smiths, mas não conseguimos a liberação e chegamos a desencanar da versão". Segundo Lúcio Maia, o disco já estava longo demais, e banda e produtor acharam que não seria necessário incluir mais uma música. Mas o diretor artístico insistia em "Maracatu Atômico", e pediu que a banda gravasse mesmo sem o sample e sem a presença de Jorge du Peixe, que estava em Recife finalizando a arte do CD. "A companhia acreditava no trabalho da banda, mas com essa música teria mais abertura em rádio", explica Davidson. "Aí, não satisfeita, inventaram os remixes", detona Paulo André.

Sem a aprovação do grupo, a Sony encomendou a Edu K e ao DJ Cuca (quem?) três remixes de "Maracatu Atômico". "Não lembro se a banda foi informada ou não. Faz tempo...", desconversa Davidson. Mas eu não fui a favor dos remixes. Foi uma imposição da presidência. Segundo Paulo, a Nação não concordava, mas não podia fazer nada. Não é o que os integrantes contam e nem mesmo o que Chico Science falou aos jornais na época. Segundo a Folha de S.Paulo de 8 de junho de 1996, ele disse que gostaria de ter sido informado sobre isso. "Não sabia que os remixes iam entrar", completou. Jorge, Lúcio e BiD endossam o coro e atribuem isso ao estremecimento final da relação da banda com a gravadora.

Os remixes de "Afrociberdelia" foram a cereja do bolo que era arremessado em fatias contra a banda. Antes deles, ainda houve outra pendenga envolvendo o Hollywood Rock. "Levamos alguns dias para ajustar os instrumentos no estúdio e, 15 dias depois de começarmos os ensaios, o Liminha pediu pra gente mudar de sala, porque tinha de ensaiar com o Gil para o festival", diz Lúcio Maia. Foi a primeira tensão com o dono da bola. "Fizemos um acordo para usar o estúdio num horário meio estranho, das 19 às 4 horas da manhã", lembra BiD. "Não é fácil trabalhar com esse relógio revirado. Para piorar, chovia muito no Rio, e a luz do estúdio acabava direto. Às vezes, o sistema contra a queda de energia falhava e o computador não salvava o material de um dia inteiro... Foi muito estresse."

O clima com Liminha pesaria ainda mais no aniversário de BiD. Era 27 de dezembro de 1995 e o grupo decidiu parar as gravações para receber alguns amigos. Apareceram Rafael Ramos, hoje produtor, Rafael Crespo, BNegão e Marcelo D2, então no Planet Hemp. "A festa girava em torno da música, mas como ninguém é de ferro tinha bebida, mas não estava uma zona. Só que um dos assistentes do estúdio chapou e vomitou. O Liminha ficou louco", conta Lúcio. Em vez de parabéns, BiD acordou no dia seguinte com um telefonema da Sony mandando eles saírem do Nas Nuvens. "Tivemos uma reunião e o clima se tranqüilizou, mas ficamos um tempo sem conversar direito", recorda o guitarrista. Liminha ameniza o fato: "Como eles não eram do Rio, o estúdio virou um ponto de encontro. Eu só tive de dar um toque para eles pegarem um pouco mais leve. Hoje, acho a maior graça disso. O humor da Nação, que já não era dos melhores, quase foi para o espaço enquanto o disco ficou cozinhando de janeiro a maio de 1996 nas mãos da Sony".

A lembrança geral de Afrociberdelia é de uma produção muito tumultuada por fatores externos, mas altamente sincronizada entre a banda e BiD. Geralmente os discos são compostos por blocos de música. "Afro é mais ambiental, as faixas têm um conceito como um todo", aponta Du Peixe. O grande mérito de BiD foi ter se aproximado em estúdio do baque ao vivo que era a Nação Zumbi. "Nosso som saiu", comemorou Chico na véspera do lançamento. "Estamos fazendo um disco que é a nossa cara". BiD atribui a maior fidelidade à atenção especial que deram à captação dos tambores. Um esquema que envolvia um microfone no corpo do tambor, outro junto à pele e mais dois ambientes na frente, pegando o som geral. As guitarras de Lúcio Maia receberam tratamento especial do engenheiro de som, o americano G-Spot. No fim das contas, BiD acha que até mesmo os problemas ajudaram: "Tem uma energia forte porque eles descarregavam a tensão enquanto gravavam. E todos estavam num momento bastante criativo". Para ajudar e suportar as sessões, substâncias diversas davam energia extra.

"Não seguimos um modelo de composição", afirma Du Peixe. "As músicas vinham toda hora, de todos os lugares. Fomos para o estúdio com 60% do disco e lá fechamos boa parte do material, com muita experimentação". Logo que saiu, o álbum gerou uma primeira turnê nacional em junho e, no mês seguinte, uma internacional. "Fomos para Suíça, Alemanha, Bélgica, França... Foram 13 shows inesquecíveis". O grupo estava melhor no palco. O contato com David Byrne feito no ano anterior, quando a Nação abriu o show de Gilberto Gil no Summer Stage, no Central Park foi restabelecido diante do interesse do selo Luaka Bop em lançar "Afrociberdelia". Mas a Sony não quis e ofereceu o disco às suas subsidiárias. "O problema é que enfiaram a Nação num pacote rock en español. A banda ficou perdida ali", critica Paulo André.

Apesar da ressalva geral por causa da duração do disco, a maioria das músicas de "Afrociberdelia" fez história. Desde "Macô", com o sutil sample de "Take Five", de Dave Brubeck, e a participação de Gilberto Gil, até as releituras de músicas da época da Loustal, banda anterior de Chico, Lúcio e Dengue: "Manguetown" e "Etnia". "Afrociberdelia" chegaria ao Disco de Ouro em abril de 1997 e até hoje vendeu mais de 190 mil cópias. "O disco era um pouco de futurismo, sexualidade, ficção científica, o conceito de enter e del do mundo digital, arranjado com as origens africanas", sintetiza Du Peixe. Se há quem aponte a Nação Zumbi de hoje como uma das melhores bandas do Brasil, não se deve esquecer que seu florescimento tem raízes profundas num passado não muito distante. Raízes afrociberdélicas.

Maré cheia
A onda do mangue beat ainda bate, mas há quem viva em outras praias de Recife
Francisco de Assis França, o Chico Science, morreu aos 30 anos, em 2 de fevereiro de 1997, num acidente de carro a caminho de Olinda. A figura mais emblemática da recente transfiguração do pop nacional partiu na véspera do Carnaval, flanando sobre o mangue do Memorial Arcoverde. Contudo, grande parte da cena que criou o mangue beat permanece ativa: mundo livre s/a, Eddie, Devotos, Cascabulho e Pácua & Via Sat. Outros partiram para novos formatos, como Dirceu Melo, ex-Jorge Cabeleira, que lançou CD do Eta Carinae em agosto, e Siba (Mestre Ambrósio), que deu início à carreira-solo. Dessa turma vem o Monjolo, de integrantes dos extintos Querosene Jacaré e Songo, que funde afro beat, rock e pop. "O mangue beat mudou a cidade radicalmente. Criou-se um horizonte para a cultura pernambucana", diz o baterista AD Luna. Apesar disso, o Monjolo sentou praça em São Paulo. O maior público circula nas regiões Sudeste e Sul. Chiquinho, tecladista do Mombojó, concorda: "A circulação de grana e de pessoas por Sampa é maior. Fortaleza, Salvador e Recife ainda não projetam música para o Brasil ou para o exterior". Da mesma safra fazem parte Suvaca di Prata, Bonsucesso Samba Clube, e Júnio Barreto - nomes ligados geneticamente aos manguezais de outrora. Mas, hoje, há dezenas de bandas que não reverenciam os caranguejos com cérebro, como Mellotrons, 3 Ets Records, Profiterolis, The Playboys (do single "Paulo André Não me Ouve", referência ao ex-empresário da Nação), Chambaril, Backing Ballcats Barbis Vocals e Grilowsky. Essa movimentação chegou a ser batizada de off-mangue pela imprensa local. "Quiseram criar notícia que não existe", opina Viviane Menezes, produtora do festival Coquetel Molotov, que impulsionou esses novos nomes. "A galera não nega o mangue beat e admite que tudo que acontece hoje em Recife tem a ver com ele, mas querem fazer sua própria história".

(matéria publicada na revista Bizz, edição 206, outubro de 2006. Autor: Igor Ribeiro)